História do Baixo Contínuo
Este trabalho pretende expor ao leitor um pouco da história de uma estrutura musical que foi base de toda a teoria e composição musical até aproximadamente 1800.
Esta estrutura chama-se baixo contínuo, teve início no século XVI e só perdeu terreno no final do século XVIII, devido a mudanças de concepções musicais. A história da música é uma sucessão de negações a períodos anteriores, e ao negarem a concepção composicional barroca, no início do classicismo, tanto a teoria do baixo contínuo, como a improvisação, até então muito utilizada, tiveram grande declínio.
A meu ver, o baixo contínuo é uma forma tão ou mais eficiente de se analisar músicas quanto as outras teorias harmônicas. Em certas teorias harmônicas como a harmonia funcional e tradicional, há diversas falhas e incoerências analíticas (como por exemplo, acordes sem fundamental, acordes em segunda inversão com quinta no baixo, etc.). Problemas como estes seriam de fácil resolução numa análise a partir do baixo contínuo, teoria que só lida com os intervalos entre as notas.
Alem disso, a execução do baixo continuo ao teclado é muito importante para regentes, pois além de desenvolver raciocínio musical, percepção, harmonia e contraponto, entre outros, facilita o estudo de partituras (ajuda no aprendizado de leitura de grades, tão essencial para a profissão).
No quinto item do trabalho falarei um pouco sobre técnicas de execução. Este item, como todos deste trabalho, não pretende ser completo, atentando para apenas alguns aspectos numa imensidão de obras e compositores da época.
Para melhor entendimento do trabalho, escrevi um apêndice explicando algumas questões teóricas básicas do baixo contínuo.
ÍNDICE
1 – Definições
2. Origem
3. Desenvolvimento
4. Instrumentos
5. Técnicas de execução
5.1 – 1o. período – até 1650
5.2 – 2a. metade do século XVII
5.3 – Século XVIII
6. Apêndice: Teoria Elementar do Baixo Contínuo
7. Bibliografia
HISTÓRIA DO BAIXO CONTÍNUO
1 . Definições
Primeiramente, antes de apresentar minha definição, gostaria de citar três definições de compositores barrocos que lidaram amplamente com o aprendizado e a técnica do baixo contínuo. É importante que saibamos a opinião de pessoas da época, pois são as que mais tinham contato com a prática musical vigente. Comecemos por Johann Mattheson (1681-1764), organista, cravista, cantor, compositor e escritor musical alemão. Em seu método de baixo contínuo, Grosse Generalbassschule, Mattheson escreve a seguinte definição (1735)[1]: “( O baixo contínuo é ) Nada mais do que um baixo com figuras que indicam uma harmonia. De acordo com as figuras deverão ser executados ao cravo acordes de quatro notas”.
Passemos agora a definição de Johann David Heinichen (1683-1729), compositor alemão, em sua obra Der Generalbass in der Komposition (1728): “Nenhum entendedor de música pode negar que o baixo contínuo é um dos mais fundamentais e importantes pontos do conhecimento musical, depois da composição. Aliás, o baixo contínuo muitas vezes mistura-se à composição musical. A execução do baixo contínuo não é nada mais do que uma composição de quatro vozes a partir de um baixo dado”.
Para encerrar, observemos a opinião de Johann Sebastian Bach (1685-1750) sobre o assunto:
“O baixo contínuo é a estrutura fundamental da música e é executado com ambas as mãos, de modo que a mão esquerda toque as notas escritas e a mão direita toque notas consonantes ou dissonantes às outras. Isto deve formar uma harmonia agradável para a glória de Deus e o descanso do espírito”.
Fazendo uma pequena análise das definições, concluímos que a primeira aborda o contínuo de uma maneira mais prática (execução de harmonias a partir de figuras), e não fala nada sobre ornamentação. Já a segunda mostra um aspecto importante da educação musical da época: o baixo contínuo era considerado vital para a aprendizagem musical e principalmente para a composição musical (todos os grandes compositores do período barroco, clássico e até romântico tiveram o baixo contínuo como base de seu aprendizado musical). Bach já tem uma definição ligada à teoria dos afetos, uma visão mais filosófica predominante no período barroco (“descansar o espírito”).
O baixo contínuo consiste numa linha de baixo que, podendo ou não ser figurada, evidencia ao executante a harmonia a ser executada (e improvisada).
As três questões mais importantes que dizem respeito à história e à técnica de execução são as seguintes:
1) Por quê, como e onde esta técnica começou?
2) Quais são as harmonias grafadas e como o executante deve interpretá-las?
3) O executante deve tocar sozinho ou acompanhado por outros instrumentos? Se acompanhado, por quais?
A prática do baixo contínuo não envolve apenas questões que concernem à interpretação e ao estilo histórico, mas envolve outros tópicos do conhecimento musical, como orquestração, improvisação, regência, contraponto e harmonia.
O termo baixo contínuo deriva provavelmente do compositor L. da Viadana, que teve sua obra “Cento concerti e cclesiastici … con il basso contínuo” publicada e divulgada por toda a Europa. Viadana escolheu o nome “contínuo” pois a linha fornecida ao acompanhamento não havia sido retirada da linha vocal dos baixos (como era de costume), mas sim era uma linha independente que percorria toda a composição sem interrupções.
[1] As definições foram extraídas de Keller, p. xiv.
2 . Origem
O baixo contínuo tem seu surgimento diretamente ligado ao renascimento e à busca de antigas teorias gregas, nas quais, como afirmavam os teóricos renascentistas, havia a predominância de um solista acompanhado por um instrumento.
A prática de contínuo provavelmente começou a se desenvolver na música secular italiana no início do século XVI, vindo a ecoar na música sacra apenas no final do século.
Dois fatores principais foram essenciais ao surgimento do contínuo:
1) Renascimento da monodia acompanhada[1]
Na Idade Média e início do Renascimento, era mais relevante numa composição musical a igualdade entre as vozes e a complexidade contrapontística. Já no Renascimento tardio/ início do Barroco, há uma grande valorização da monodia acompanhada, que seria derivada da prática musical grega. O baixo contínuo seria então o acompanhamento desta monodia, inicialmente realizado em instrumentos da família dos alaúdes (chitarrone, teorba) e, posteriormente, em instrumentos de teclado (cravo, órgão, regal[2]).
2) Praticidade
A maioria das canções acompanhadas no século XVI vinha com um acompanhamento a quatro vozes, como se todas as vozes do coro estivessem concentradas em um só instrumento. No entanto, a execução nem sempre era possível, pois havia instrumentos acompanhantes de várias naturezas, como instrumentos de cordas dedilhadas (alaúde, chitarrone, cítara, harpa, lira) e de teclado. A execução das quatro vozes também já não era mais importante, pois a importância maior estava na melodia solista. Para que estes problemas fossem solucionados criou-se um sistema mais simples e eficaz para os acompanhamentos.
Além disso, houve um grande aumento na produção musical, de modo que a maioria das cortes possuía um certo número de músicos profissionais e um órgão. O desenvolvimento do contínuo ofereceu uma maior praticidade musical nas seguintes funções:
a) segurar a afinação de coros;
b) substituir instrumentos originalmente especificados pelo compositor para uma performance em outro local (dependendo da acústica de cada local, o que variava muito);
c) substituir cantores por vozes instrumentais; na falta de um cantor sua voz seria executada ao órgão;
d) substituir inteiramente um coro (celebrações menores, impossibilidade da presença do corpo musical).
Havia também um problema em relação aos organistas: possuíam uma linguagem própria de notação (tablatura), de modo que todos os acompanhamentos deveriam ser transcritos para esta linguagem. O baixo contínuo eliminou esta transcrição e poupou os organistas de possuírem várias coleções de transcrições para órgão.
As três primeiras publicações de baixos cifrados, isto é, que possuem cifras explicando diretrizes para o acompanhamento, ocorreram entre outubro de 1600 e fevereiro de 1601, e são as seguintes: Rappresentatione di Anima et di Corpo, de Emilio de Cavalieri[3], Euridice, de Giulio Caccini[4], e Euridice, de Jaccopo Peri[5].
No início não havia cifragem dos baixos; a técnica só começou a ser amplamente utilizada a partir de 1610 (mesmo após a popularização da técnica, os compositores continuaram a grafar de uma forma incompleta). Anteriormente possuíamos apenas bemóis e sustenidos [6] alterando a natureza do acorde. É também provável que a técnica de cifragem seja alguns anos anterior a 1600, pois foram encontrados alguns manuscritos de Caccini que já possuíam este tipo de notação. Vale ressaltar que os três compositores pertenciam à Camerata Fiorentina, de modo que o método de cifragem pode ter saído desta academia de eruditos.
[1] O termo monodia acompanhada não significa uma única voz acompanhada. Às vezes havia duas ou três vozes. O termo significa que as obras possuíam um caráter mais recitativo.
[2] O regal é um pequeno órgão portátil de um só registro, que na maioria das vezes era de palheta, com um timbre bem anasalado.
[3] Emilio de Cavalieri (1550-1602). Compositor e humanista italiano. Pertencente à Camerata Fiorentina ou Camerata dos Bardi, contribuiu com suas obras escritas para o desenvolvimento do “stillo” recitativo e da ópera.
[4] Giulio Caccini (1545-1618). Compositor e cantor italiano. É um dos mais importantes representantes das novas concepções musicais que, como consequência dos debates literários, estéticos e filosóficos dos músicos da Camerata Fiorentina, de que fazia parte, procuravam restaurar a música grega, produzindo assim uma nova concepção musical, a do “stillo” recitativo, vital para a história da música.
[5] Jaccopo Peri (1561-1633). Compositor integrante da Camerata Fiorentina, com ideias semelhantes aos colegas.
[6] Os bemóis e sustenidos colocados sob as notas dizem respeito à alteração das terças, por isso a alteração da natureza do acorde.
3 . Desenvolvimento
Os tratados de contraponto do século XVI classificam os intervalos como números; destes números vem a cifragem do baixo contínuo, que designam que intervalos devem ser executados a partir da nota de baixo dada.
Nas primeiras peças cifradas, há uma grande dificuldade na recomposição das harmonias devido à grande imprecisão na grafia por parte dos compositores e devido a variações de significados de região para região. Canções para contínuo de compositores como Purcell e Cavalli foram arranjadas por eles próprios para vozes e cordas e o resultado revela o quão distante estava a grafia da real intenção harmônica do compositor. Há também confusões entre 6 e b, pois são símbolos parecidos e usualmente grafados sem cuidado, de modo que pode haver muita confusão nestes casos.[1]
Há dois principais problemas na reconstituição dos baixos do primeiro período:
1) Em algumas situações onde ocorrem determinadas cadências, não houve uma especificação grafada pelo compositor. Certas cadências eram “fórmulas” pré-estabelecidas na época que deveriam ser conhecidas pelo músico executante. Nos trechos musicais em que ocorriam estas fórmulas, os compositores não se preocupavam em notar algo, pois o intérprete já saberia solucionar este problema.[2] Cabe a nós entender quais eram estas fórmulas pré-estabelecidas estudando os tratados da época. Este problema ocorre no Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi.
2) De acordo com a prática composicional da época, havia também uma busca pela contradição do óbvio, de forma que certas cadências eram alteradas, a fim de criar uma quebra maior da homogeneidade na composição. Isto também era comum em Monteverdi.
Outro fato importante é o de que inicialmente os compositores especificavam a oitava em que o intervalo deveria ser executado (por exemplo, havia diferença entre 11 e 4, havia símbolos como 13, 15, etc.). Esta prática caiu em desuso ao longo do tempo.
Em relação aos tratados, podemos dizer que foram decisivos para a difusão da técnica do baixo contínuo por toda a Europa. Um dos tratados que ajudou nesta difusão, principalmente na Alemanha, foi o Syntagma Musicum de Michel Praetorius. Em seu tratado, Praetorius, que tomara conhecimento de muitos autores italianos, citou um prefácio de B. Strozzi, defendendo que o baixo cifrado poderia dar a oportunidade a organistas de executarem motetos de Palestrina de uma forma que o ouvinte não percebesse a utilização de uma notação diferente da tablatura (considerada até então a notação mais perfeita para órgão). Vale lembrar que a substituição da tablatura pelo contínuo teve certa resistência, principalmente na Alemanha, onde perdurou até aproximadamente 1700.
Outro fator importante defendido pelos teóricos é o de que a prática do contínuo poderia empobrecer o conhecimento musical, principalmente dos executantes, que acabariam apenas lendo as cifras sem entender as razões específicas da execução de cada acorde.[3]
Além disso, à medida que o tempo passava, os tratados passaram a transmitir não mais apenas a forma de interpretação da harmonia, mas diretrizes calculadas para improvisações contrapontísticas coerentes.
Apesar da ampla divulgação, por volta de 1675 o contínuo só estava completamente difundido na Itália; na Alemanha, a prática estava apenas em grandes cortes e capelas; já na França e Inglaterra só estava disponível nas capitais. Havia certa resistência na adoção da técnica por parte de alguns compositores como Heinrich Schütz, que só escrevia partes de contínuo a pedido do escritor, e o próprio Michel Praetorius, que, apesar de divulgar a técnica em seu tratado, não apreciava escrever partes específicas cifradas.
No final do século XVII, estabeleceu-se o grupo instrumental mais comum para a execução do baixo contínuo: um instrumento de teclado (cravo e órgão, o cravo mais ligado a recitativos e o órgão mais ligado à música sacra) acrescido de uma viola da gamba baixo ou um violoncelo. Apesar disso, há exceções, como as sonatas de Arcangelo Corelli, que requisitam o alaúde além do órgão (formação muito recomendada anteriormente por Monteverdi). Nas casas de ópera, ainda havia uma grande quantidade de instrumentos, aos quais era delegada a obrigação de acompanhar os cantores de forma mais adequada. Cabia então ao cravista a função de improvisador, enquanto os outros instrumentos seguravam a harmonia.
Já na primeira metade do século XVIII, é criado um gênero muito importante, que pode ter tido uma grande contribuição no declínio da técnica do baixo contínuo: a sonata obbligato. O maior exemplo é a série de sonatas compostas por Bach para flauta e cravo, cuja voz superior da parte de cravo era uma voz independente.[4] Esta voz frequentemente responde e se contrapõe às melodias do solista.[5] Apesar das sonatas obbligato contribuírem para o declínio da técnica do contínuo, elas possuem um grande papel na reconstituição da técnica de improvisação da época, de modo que oferecem muitas resoluções de problemas relativos à execução de baixo contínuo na música de Bach.[6]
Na 1° metade do século XVIII, já podemos observar um declínio da técnica, pelo fato dos compositores entenderem que já não era mais necessário um instrumento de teclado para acompanhar quaisquer formações instrumentais. As obras que ainda utilizavam contínuo possuíam com frequência a inscrição “tasto solo”, que significava a exclusão do instrumento de teclado durante determinado texto. Muitas obras permaneciam quase inteiramente em “tasto solo”.
Ainda há, no entanto, algumas obras para contínuo durante este período e um dos principais compositores desta fase foi Mozart, que em suas missas escrevia partes de contínuo, na maioria das vezes extremamente complexas. Apesar da complexidade, o contínuo desta época não possuía a mesma função barroca, ficando muitas vezes ocultado por outros instrumentos. Por causa da complexidade (havia muita grafia) o contínuo não tem a mesma conotação improvisativa dos períodos anteriores. Além disso, havia os concertos para piano nos quais Mozart pedia ao solista (inscrição col basso) que, durante os tuttis, tocasse com a orquestra, prática comum na época. Era comum também em concertos que o solista comandasse a orquestra, sendo o contínuo uma forma de coordenação de todos os músicos[7].
[1] Basicamente esta confusão é solucionada na análise da peça. Deve-se observar a coerência musical.
[2] Um exemplo disso é a colocação de bemóis em lugares determinados. O cantor da época aprendia em sua educação musical onde colocar e onde não colocar os acidentes; é difícil reconstituir. Mais uma vez, o problema deve ser solucionado pela coerência musical. Um exemplo de edição crítica são as obras completas para órgão de J. S. Bach, editadas pela Breitkopf & Härtel. Diversas vezes, o editor propõe soluções e modificações, algumas coerentes e várias totalmente incoerentes, como alterações de “ousadias harmônicas” feitas por Bach. No coral “Erbarm dich, o herren Gott”, a edição propõe um “erro” de Bach à execução de um acorde aumentado, colocando um bequadro sobre a nota dissonante. Só que a nota dissonante pertence ao coral que está sendo arranjado, de modo que nunca poderia ser alterada.
[3] Neste ponto, já vemos aquela questão que perdura por toda a história da música: a questão do intérprete “ignorante”, que não sabe o que está tocando. Esta é uma visão preconceituosa, pois se o intérprete está executando a música de uma forma correta e coerente, está sim compreendendo o que executa. Mesmo na época, o pensamento já era falho, pois o intérprete necessitava improvisar também e, para isso, necessitava de grande conhecimento musical e “ouvido harmônico”.
[4] Vale lembrar que a mão direita do cravista foi inteiramente escrita; não era contínuo.
[5] Por exemplo, às vezes o solista executa o tema na tônica, o cravo responde na dominante.
[6] O baixo contínuo na música de Bach é extremamente complexo, de modo que seria necessário um livro para explicá-lo de uma forma mais completa.
[7] Nos próprios concertos para violino, Mozart pede ao solista que toque com os primeiros violinos durante o tutti.
4 . Instrumentos
Neste item, abordarei a orquestração do contínuo, isto é, quais foram os instrumentos utilizados ao longo do tempo. Primeiramente falaremos sobre a música sacra, na qual o órgão foi predominante. Este instrumento foi o principal acompanhante das funções litúrgicas da igreja.
Alguns órgãos possuíam também um jogo de cordas de cravo para o organista utilizar durante os recitativos. Em alguns locais não era permitido que se tocasse órgão durante a quaresma. Há também alguns estudos sobre a utilização da harpa nas funções litúrgicas, sobretudo nos países da Península Ibérica.[1]
Em relação à registração do órgão, podemos dizer que foi um tema sempre muito controverso, pois compositores e tratadistas da mesma época possuíam idéias e opiniões bem diferentes. Compositores e tratadistas como Gasparini, Viadana e Praetorius afirmavam que não se deveria acrescentar registros, mas sim quantidade de vozes. Já Monteverdi recomenda na execução do Vespro della Beata Vergine que sejam utilizadas três registrações[2] distintas para o órgão:
1) Principale – um principal de 8 pés;
2) Intermediária – Principal 8′ 4′ 2′;
3) Organo Pleno – todos os registros de Principal mais as misturas.
Alguns tratadistas, como Mattheson (1721), C. P. E. Bach (1762) e Adlung (1763), falam em seus tratados que o organista deve executar toda a voz do baixo na pedaleira, acrescentando 16′. Se não fosse possível a execução na pedaleira devido à dificuldade do trecho, o organista deveria acrescentar um 16′ pés no manual. Como se pode observar, é uma visão muito mais tardia e de um caráter mais romântico (quanto mais som, melhor).[3]
No entanto, é preferível que o organista escolha algo mais suave que o principal, como flautas e bordões[4]. Principais são muito sonoros para a execução do contínuo, cuja função é acompanhante e não solista. Para partes solenes, o organista deve utilizar registros de 8, 4 e 2 pés, enquanto que para trechos com menor volume deve utilizar apenas 8 pés. A registração depende muito também da acústica da sala (sala mais secas necessitam de mais registros) e do número de instrumentistas e cantores acompanhados pelo órgão: quanto maior, mais registros. Para trechos que possuam partes alternadas de tutti e solo o organista deve preparar dois teclados com registrações distintas: uma mais forte e uma piano.
O cravo é outro instrumento de destaque na instrumentação de contínuo. Cravos com alguns registros e dois teclados têm a possibilidade de alteração de dinâmica. O cravo foi amplamente utilizado nas funções de contínuo, principalmente em obras com caráter mais recitativo. Quase todo o repertório de contínuo foi composto para ser executado neste instrumento[5].
Sempre houve uma grande variedade de instrumentos acompanhantes, mas a combinação principal estabilizou-se em um instrumento de teclado e um instrumento de cordas friccionadas, numa tessitura grave (gambá, baixo ou cello).
Um ponto importante a ser ressaltado é a família dos instrumentos de cordas dedilhadas. Instrumentos como alaúde, chitarrone, cítara, harpa, tiveram grande importância no desenvolvimento da técnica. Em certas peças, o regente, possuindo três instrumentos executantes de contínuo diferentes como um órgão, um cravo e um chitarrone, pode lidar com a instrumentação diminuindo ou aumentando o volume do acompanhamento (para trechos em piano, apenas o chitarrone; para trechos mais fortes os três instrumentos).
Temos alguns outros instrumentos acompanhantes e executantes de contínuo principalmente na música profana, tais como fagote, sacabuxa e regal.
É necessário também dizer que o piano foi (e é) um costumeiro executante de contínuo, principalmente em apresentações modernas que não têm preocupação com a fidelidade à partitura.
Para encerrar este item, gostaria de salientar a importância da orquestração de contínuo nas apresentações de música barroca. Como já disse anteriormente, o regente, desde que possua alguns instrumentistas de contínuo, deve saber lidar com este artifício para o embelezamento da obra. É de praxe que o órgão seja utilizado para as partes de coro e orquestra, enquanto os recitativos são acompanhados pelo cravo; no entanto, há muitas combinações possíveis que podem ser utilizadas pelos regentes.[6]
[1] Consequentemente, nos países colonizados por espanhóis e portugueses, caso da América Latina e Brasil, deveriam ser utilizadas harpas nas funções litúrgicas. Há estudos nesta área, desenvolvidos pelo musicólogo Paulo Castagna, que já mostram que a harpa era muito utilizada, sobretudo nos ensaios e nas funções mais simples.
[2] Em relação a registração organística, um registro é um conjunto de tubos com uma altura e timbre determinados, que cobrem toda a extensão do teclado (um tubo para cada nota). Em relação à numeração dos registros, que diz respeito a altura, 8 pés (ou 8′) significa que o tubo do órgão correspondente aànota mais grave (dó 1) possua um comprimento de 8 pés, ou 2,4 metros. Quando executada, a nota soará na oitava real (por exemplo, o lá 3 soará 440 Hz). Se temos um registro de 4′, tudo soará uma oitava acima, pois a primeira nota do teclado terá um tubo correspondente a 4′, ou 1,2 m (metade do tamanho). Como a frequência é inversamente proporcional ao tamanho dos tubos, teremos no lá 3 não mais 440Hz, mas sim 880. Já um tubo de 16′ soa uma oitava abaixo e assim por diante.
[3] Há organistas atualmente que, por falta de conhecimento, insistem nesta tese ( e frequentemente acabam se perdendo na música ou atrasando o coro). É necessário muito estudo e prática para executar todo o contínuo na pedaleira e o resultado sonoro é duvidoso.
[4] Gedackt, em alemão.
[5] Na verdade, os compositores , apesar de ao compor pensarem no cravo como expressão musical, compunham para o chamado Clavier . Esta palavra significava que o trecho poderia ser executado em qualquer instrumento de teclado. A instrumentação não era um dos fatores preponderantes no período barroco.
[6] Um exemplo importante é o regente Gabriel Garrido (Argentina), que em suas apresentações de música colonial hispânica utiliza sem preconceitos a harpa paraguaia.
5 . Técnicas de execução
5.1. 1° período: até 1650
No primeiro período, o mais importante texto sobre baixo contínuo está no tratado Syntagma Musicum, de Michel Praetorius (1560-1629). Praetorius, entre outras coisas, coloca os requisitos básicos de um continuista e algumas regras de execução.
Eis os requisitos básicos:[1]
– O organista deve entender contraponto, ou ao menos ser capaz de cantar perfeitamente.
– O organista deve entender música escrita em partitura ou tablatura.
– O organista deve ter um bom ouvido e um bom senso de escuta.
As regras são as seguintes:
– O organista deve acompanhar perfeitamente o cantor.
– O organista inexperiente, antes da execução, deve dar uma olhada em toda a partitura em busca de dificuldades e, posteriormente, começar a sua execução.
– O executante deve acompanhar o registro do solista.
– Se a peça for uma fuga, o organista deve começar tocando o sujeito; quando todas as vozes estiverem soando simultaneamente o organista estará livre para tocar tantas vozes quanto achar necessário.
– Não se deve acrescentar registros quando há um tutti. Deve-se apenas acrescentar vozes (tocar com pés e mãos). É preferível que o organista prepare dois teclados no órgão: um para o piano (solo) e outro para o forte (tutti).
– O contínuo nunca deve ultrapassar a tessitura do solista.
– A mão direita deve estar em movimento contrário à mão esquerda.
– Quando há uma tirata[2], o acompanhamento deve permanecer estático.
– Quando há notas rápidas deve-se harmonizar cada uma.
O pensamento básico deste período é que o acompanhamento deve ser uma extensão perfeita do solista. Se este for uma soprano, o acompanhamento deve ir mais para a região aguda, se for um baixo, deve ser mais grave e assim por diante. Neste período, é muito mais importante o tipo de som conseguido pelo continuista em seu instrumento do que cuidados com a condução melódica. É mais importante que o continuista consiga “mover os afetos”[3]do que evite conduções melódicas impróprias.
Um dos pensamentos importantes sobre isso é o de Heinrich Albert(1602-1651), no prefácio de suas Árias[4]: ”Uma coisa deve estar na sua mente: você deve lidar com o baixo contínuo de acordo com a possibilidade de seu instrumento. Você não deve pensar em cada nota com extremo preciosismo; deve às vezes cortá-las como se estivesse cortando repolho”.
Compositores deste período: Cavalieri, Caccini, Peri, Monteverdi, Heinrich Albert, Schütz, Adam Krieger, Praetorius, entre outros.
[1] Keller, p.29
[2] Tirata é uma figuração onde há notas rápidas em sequências de graus conjuntos no baixo, de modo que o organista não deve harmonizar nota por nota.
[3] Teoria dos Afetos: movimento filosófico do período barroco.
[4] Keller, p. 33
5.2 . 2° metade do século XVII
Na segunda metade do século XVII, temos uma grande ascensão do violino e da música instrumental como um todo (música de câmara). Desta forma, também o baixo contínuo sofreu algumas modificações, sendo seu caráter mais contrapontístico (melhor condução de vozes) que descritivo ou operístico. No entanto, é um caráter mais clássico do que viria ocorrer posteriormente na ascensão do barroco alemão.[1]
Neste segundo período, as obras de câmara de Arcangelo Corelli (1653-1713) possuem importância significativa.
Observe no exemplo abaixo a sequência de dissonâncias “9” que são resolvidas descendentemente. O continuista deve executar exatamente o que o primeiro violino executa. (Arcangelo Corelli. Sonata da Camera, n°1, op.4):
Neste período, todos os teóricos mencionam também o fato de que o continuísta nunca deve se considerar um solista; sempre deve-se comportar como um acompanhador (Heinichen).
[1] Na Itália e no sul da Alemanha as composições possuiam um caráter mais clássico, enquanto no Norte as composições possuiam uma elaboração contrapontística maior. Buxtehude é um exemplo disso.
5.3 . Século XVIII
O século XVIII é caracterizado pelo apogeu do período barroco e, consequentemente, o apogeu do baixo contínuo. Todas as obras da época que não fossem obras solistas utilizavam esta técnica para preenchimento harmônico e sustentação aos instrumentos. Mesmo pequenas peças para piano a 2 vozes, como minuetos, eram preenchidos com baixo contínuo.
Os métodos surgidos neste século não eram mais tão enfáticos em como ensinar o aluno a montar os acordes, mas ensiná-lo a proceder corretamente em performances práticas (adequar a ornamentação ao estilo, fazer melhor movimentação melódica, melhor condução de vozes, etc.).
Um dos maiores e mais importantes métodos desta época é o Grande Método de Baixo Contínuo (Grosse Generalbassschule, 1931), de Johann Mattheson, que fornece uma série de exercícios ao aluno principiante, de forma que, ao final do curso, se tornaria um exímio continuista.
Neste método, há exercícios muito complexos, em tonalidades que não eram utilizadas na época, o que mostra que Mattheson já imaginava o que viria posteriormente no final do barroco. Mattheson argumentava que, sabendo lidar com tonalidades difíceis e acordes “esdrúxulos”, o estudante, ao se deparar com eles, não teria problemas em sua execução. Além disso, Mattheson dá muitos exemplos de realizações estilísticas, sendo seu método completo.
Um pensamento de Heinichen, sobre ornamentação, que data desta época: “Na arte do baixo contínuo ornamentado não se deve tocar os acordes de uma forma simples, mas se deve introduzir aqui e ali uma ornamentação em todas as vozes, especialmente na voz superior da mão direita, que é a mais proeminente. Isto possibilita mais graça ao acompanhamento, uma vez que não é executado apenas a quatro ou mais vozes de uma forma simples”.
Por haver uma grande diversidade de estilos, não é possível que determinemos um estilo próprio de execução neste período. Isto varia de região para região e de compositor para compositor. O intérprete tem de observar o compositor e sua localização. Compositores ao Norte costumam ter obras mais ornamentadas contrapontisticamente, enquanto compositores do Sul e ingleses costumam ser mais clássicos.
Dentre todos os compositores do barroco, o mais significativo em relação ao baixo contínuo foi Johann Sebastian Bach (1685-1750). Bach escreve harmonias muito elaboradas, com cifras até então nunca vistas. É extremamente difícil executar seus contínuos, seu método de improvisação e ornamentação varia de época para época. Há muitas controvérsias entre os editores de contínuo de Bach, sendo que as realizações chegam a variar completamente de realizador para realizador.
Muitas vezes, é necessário que o continuista execute trechos fugados em sua mão direita, em contraponto com a voz ou instrumento solista. Muitas vezes, em introduções, Bach oferece apenas a linha inferior, de modo que o continuista tenha que realizar toda a introdução na sua mão direita. Há também muitas peças, provavelmente executadas pelo próprio Bach, que não possuem cifragem alguma, de modo que o intérprete tenha de pesquisar o que vai tocar.
As sonatas para flauta com acompanhamento de cravo são um exemplo de ornamentação de contínuo em Bach. Surpreendentemente, Bach escreveu toda a mão direita do acompanhamento, de modo que estas sonatas servem de base para resolução de problemas relacionados à realização de contínuo. Outro exemplo de ornamentação bachiana são os prelúdios corais para órgão, que mostram um pouco como funcionava a ornamentação na época. Há também exemplos didáticos que Bach escreveu para dar a seus alunos (Sarabande da Suíte Inglesa n°2). O exemplo da Sarabande n°2 mostra-nos como era consistente a improvisação na época, e como não temos a menor idéia do que era feito.
Outras obras importantes são as utilizações tardias de baixo cifrado, sobretudo nas obras sacras.
Mozart é um grande exemplo disso. Em suas missas, escreveu contínuos trabalhadíssimos, de modo que é quase impossível tocá-los sem transcrição. Além disso, há diversas trocas de clave, que ocorriam para o continuista saber que voz estava acompanhando. Nos primeiros concertos para piano, quando não estava solando, o pianista executava contínuo. Haydn também escreveu partes de continuo em suas primeiras sinfonias.
6 . Apêndice – Teoria elementar do baixo contínuo
Formação dos acordes
Como já defini anteriormente, o baixo contínuo evidencia ao executante a harmonia que deve aparecer no trecho musical. Desta forma, o executante montará acordes a partir de uma linha de baixo pré-estabelecida, e estes acordes obedecerão às relações intervalares fornecidas pelas cifras (ou por sua própria omissão). Neste item, explicarei o método de formação dos acordes e algumas convenções de época, concernentes às relações intervalares entre as notas.
Primeiramente devo explicar que todo intervalo é designado por números: para uma segunda o número 2, para uma terça o número 3, e assim por diante.
Em seguida, o intérprete deve descartar todos os conceitos de teorias harmônicas vigentes, como a harmonia tradicional e harmonia funcional. Não há no baixo contínuo o conceito de inversão de acordes e acordes sem fundamental (todos os acordes possuem fundamental, que é sem exceções a nota do baixo). Para uma melhor compreensão, observe o exemplo 1.1.
Na harmonia tradicional, este acorde é considerado um acorde de dó com a quinta no baixo; já na harmonia funcional este acorde é considerado uma dominante com quarta e Sexta, se estiver em um ponto cadencial. No baixo contínuo, ele é encarado como um acorde em fundamental, com quarta e sexta, um “sol – quatro e seis” ou “seis – quatro”.
Passarei então às convenções de época. Devemos observar que muitas do baixo não possuem cifras ou possuem cifras insuficientes.
Exemplo 1.2 (J.B.Lully, Ballet des Plaisirs, 1655)
Observe como há muitas notas que não possuem grafia, enquanto outras apenas um sinal ou número. Na tabela a seguir, serão explicadas estas convenções de época:
Inscrições sob as notas | Significado |
Sem cifras | Acorde 5-3 |
6 | 6-3 |
7 | 7-5-3 |
2 | 6-4-2 |
4 | 8-5-4 (quase sempre o 4, dissonância, vai para a consonância, 3, sendo o acorde seguinte um 8-5-3)[1] |
9 | 9-5-3 (O nove também costuma resolver no oito, consonância) |
Sinais como #, b e n | Alteram a terça do acorde. 5-#3 |
Acidentes ao lado dos números | Alteração apenas do intervalo |
Números cortados | Intervalo sustenizado: 6 cortado equivale a #6 [2] |
Em relação aos dobramentos, para acordes que não possuam dissonâncias, há a seguinte tabela, que não deve ser seguida com extremo rigor:
Acorde | Dobramento |
5-3 | Oitava (8) |
6-3 | Terça ou sexta (3 ou 6) |
6-4 | Oitava (8) |
Execução[3]
O método mais simples e costumeiro de execução do baixo contínuo consiste no continuista executar o baixo com a mão esquerda e montar a harmonia (acordes) com a mão direita. O iniciante deve começar executando cadências simples ao teclado, tais como I-IV-V-I, I-II-V-I, em todas as posições[4] e em todas as tonalidades. Posteriormente, deve começar a executar contínuos bem simples, que não possuam muita cifragem. No encadeamento entre acordes, vale a antiga regra da menor movimentação possível entre as vozes e, quando possível, da preparação e resolução de dissonâncias. É necessário também que o iniciante já pense no caráter melódico da linha improvisada, que é de extrema importância nesta técnica (É importante que o executante tenha uma base sólida de contraponto).
Posteriormente o estudante deve executar contínuos com maior cifragem, como os de J. S. Bach. Quando superar esta fase, deve então recorrer aos Mozart (missas), que além de possuir cifragem excessiva, trocam várias vezes de clave (Mozart em um trecho da Grande Missa em Dó utiliza quatro claves diferentes: 3 de dó e clave de fá). Um bom treino também são os contínuos não cifrados de Bach, nos quais o continuista deve deduzir a harmonia a partir da melodia e do baixo fornecido[5].
[1] O 4 na maioria das vezes é um tipo de dissonância conhecida no contraponto como retardo.
[2] Há exceções nesta regra.
[3] É importante que o iniciante já possua grande familiaridade com o teclado.
[4] Posições de oitava: a nota do soprano forma uma oitava com o baixo. Na posição de quinta a nota forma um intervalo de quinta com o baixo e assim por diante.
[5] Bach não cifrava porque possivelmente era o próprio executante dos trechos.
7 . Bibliografia
– KELLER, Hermann: Thoroughbass Method: With Excerpts From the Theoretical Works of Praetorius, Niedt, Telemann, Heinichen, J.S. and C.P.E. Bach: NY, 1959.
– WILLIAMS, Peter: Figured Bass Accompaniment, Volume 1. Edinburgh: University Press of Edinburgh.
– WILLIAMS, Peter: Figured Bass Accompaniment, Volume 2. Edinburgh: University Press of Edinburgh.
– PALISCA, Claude: Baroque Music. New Jersey: Prentice Hall, 1981.
– CANDÉ, Roland de: História Universal da Música. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
– GROUT, Donald e PALISCA, Claude: História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 1998.
– BROWN, Howard Mayer e SADIE, Stanley: Performance Practice; Music After 1600. Nova York: Norton, 1989.
– DOLMETSCH, Arnold: The Interpretation of the Music of XVII &XVIII Centuries. Londres: Novello, 1946.
– BERRY, Wallace: Structural Functions in Music. Nova York: Dover, 1987.
– SALZER, Felix e SCHACHTER: Carl, Counterpoint in Composition. New York: Columbia University Press, 1989.
– RENWICK, William: Analyzing Fugue. Stuyvesant (EUA): Pendragon Press, 1995.
– HASKELL, Harry: The Early Musical Revival: a History.Londres, Thames and Hudson, 1988.
– MANN, Alfred: The Great Composer as Teacher and Student. Nova York: Dover, 1987.
Guilherme Mannis
Fonte https://movimento.com/historia-do-baixo-continuo/